domingo, 2 de janeiro de 2011

A igreja existe para os cansados e oprimidos

Neste Evangelho nos encontramos com a apresentação oficial do colégio apostólico: «Os nomes dos doze apóstolos são estes: primeiro Simão, chamado Pedro...». Menciona-se claramente o primado de Pedro no colégio dos apóstolos. Não diz: «Primeiro Pedro, segundo André, terceiro Tiago...», como se se tratasse simplesmente de uma série. Diz-se que Pedro é o primeiro no sentido forte de que é cabeça dos demais, seu porta-voz, quem os representa. Jesus especificará mais tarde, no mesmo Evangelho de Mateus, o sentido do ser «primeiro», quando dirá «Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja...».

Mas não queria deter-me a analisar o primado de Pedro, mas o motivo que leva Jesus a escolher os doze e enviá-los. Descreve-se assim: «Jesus, ao ver a multidão, sentiu compaixão dela, porque estavam humilhados e abatidos como ovelhas sem pastor». Jesus viu a multidão e sentiu compaixão: isto o levou a escolher os doze apóstolos e a enviá-los a pregar, a curar, a libertar...

Trata-se de uma indicação preciosa. Quer dizer que a Igreja não existe para ela mesma, para sua própria utilidade ou salvação; existe para os demais, para o mundo, para as pessoas, sobretudo para os cansados e oprimidos. O Concílio Vaticano II dedicou um documento inteiro, a Gaudium et spes, a mostrar como a Igreja existe «para o mundo». Começa com as conhecidas palavras: «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são por sua vez as alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo».

 «Ao ver a multidão, sentiu compaixão dela, porque estavam humilhados e abatidos como ovelhas sem pastor». Os pastores de hoje, desde o Papa até o último pároco do povoado, apresentam-se, desde esta perspectiva, como os depositários e continuadores da compaixão de Cristo. O falecido cardeal vietnamita Van Thuan, que havia passado treze anos nas prisões comunistas de seu país, em uma meditação dirigida ao Papa e à Cúria Romana, disse: «Sonho com uma Igreja que seja uma “porta santa” sempre aberta, que abrace a todos, cheia de compaixão, que compreenda as penas e os sofrimentos da humanidade, uma Igreja que proteja, console e guie toda a nação para o Pai que nos ama».

A Igreja deve continuar após sua ascensão, a missão do Mestre que dizia: «Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso...». É o rosto mais humano da Igreja, o que melhor a reconcilia com os espíritos, e que permite perdoar suas muitas deficiências e misérias. O Pe. Pio de Pietrelcina chamou o hospital que fundou em São Giovanni Rotondo, «Casa de alívio do sofrimento». Toda a Igreja deveria ser uma «casa de alívio do sofrimento». Em parte, deve-se reconhecer que o é, a não ser que fechemos os olhos à imensa obra de caridade e de assistência que a Igreja desempenha entre os mais deserdados do mundo.

 Aparentemente as multidões que vemos ao nosso redor, ao menos nos países ricos, não parecem «cansadas e abatidas», como nos tempos de Jesus. Mas não nos enganemos: detrás da fachada de opulência, sob os tetos de nossas cidades, há muito cansaço, solidão, desespero, e às vezes inclusive desespero. Não parecemos multidões «sem pastor», dado que muitos lutam em todos os países para se converter em pastores do povo, ou seja, em chefes e controladores do poder. Agora, quantos entre eles estão dispostos a levar à prática o requisito de Jesus: «O que recebestes de graça, de graça dais»?

por Cassiano Azevedo, Missionário Com. de Vida Shalom *

A experiência com Deus vivo

Cassiano Rocha Azevedo
Missionário da Comunidade Católica Shalom



Meus ouvidos tinham escutado falar de ti, mas agora meus olhos te viram” (Jó 42,5).

Essa foi a resposta de Jó a Deus após sua experiência com a presença divina. Jó havia sido provado duramente por Deus. Em um só dia, viu seus filhos e escravos mortos, perdeu todos os seus rebanhos pela ação de salteadores, assassinos, furacões, relâmpagos... Perdeu até mesmo a saúde...

Diz a Bíblia que durante todo o seu sofrimento Jó permaneceu fiel, não cometeu pecado algum nem proferiu contra Deus qualquer blasfêmia. No capítulo 38 do livro de Jó lemos que do seio da tempestade Deus falou a Jó e, à medida que Deus fala, o sol vai clareando as suas trevas. Deus fala no íntimo de Jó e a experiência da sua presença santa o faz exclamar: “Meus ouvidos tinham escutado falar de ti, mas agora meus olhos te viram”.

A experiência da presença é tão forte que ele diz: “meus olhos te viram”. E, diante da santidade de Deus, reconhece o pecado e se retrata – não por ter cometido crimes, mas porque diante da santidade de Deus, todos somos injustos e pecadores – e penitencia-se no pó e na cinza. Um novo tipo de arrependimento, experimenta o coração de Jó movido por íntima e profunda compulsão interior de considerar os seus atos diante da grandeza e da majestade divina. Jó silencia. É Deus quem vai justificá-lo. O Senhor repreende os amigos e pede que Jó interceda por aqueles que tornaram sua provação mais espinhosa. Jó, o pobre de Javé, o mais necessitado de intercessão, aprende a interceder na sua pobreza e, diz a Bíblia, é justamente enquanto ele intercede por seus amigos que o Senhor lhe restitui tudo o que ele havia perdido, restituindo-lhe em dobro. Sim, verdadeiramente a cura vem pela nossa disposição em entrar em unidade com todos; essa é a obra do Espírito Santo na vida de Jó e na nossa. Jó nos ensina que a experiência pessoal supera qualquer conhecimento intelectual.

Outra grande figura do Antigo Testamento, o rei Davi, tem algo a nos ensinar sobre isso. O maior desejo de Davi era ver Deus em toda a sua glória, por isso queria construir-lhe um templo, mas a glória divina foi-lhe manifestada diante da visita da misericórdia, quando matara Urias para ficar com Betsabé (cf. Sl 50).


Essa contemplação foi esperada também pelo profeta Simeão, no Templo. Ao receber Jesus no colo, exclama com toda a alma: “Deixai agora vosso servo ir em paz, conforme prometestes, ó Senhor. Pois meus olhos viram vossa salvação, que preparastes ante a face das nações!” (Lc 2,29-30). Diante de Jesus menino, o velho Simeão se dá conta de que vivera para aquele momento e, portanto, sua vida estava completa. Nada mais lhe faltava.


Como o olhar de Deus cruzou com o de Jó e o seu ser iluminou-se, assim foi com Maria Madalena, quando sentiu-se pela primeira vez olhada como pessoa e não como prostituta; o olhar de Jesus era cheio de misericórdia, como o foi para Pedro na hora da negação, e o foi para a mulher adúltera: “Nem eu te condeno, vai e não tornes a pecar”. É o único olhar que verdadeiramente transforma uma vida.


Esse amor espera ser descoberto por nossos olhos em qualquer situação. Seja qual for o momento que atravessamos, se nos restam ainda anos, meses, dias ou apenas horas de vida. Um dos ladrões na cruz – depois disso chamado de “Bom ladrão” –, ao contemplar o Cristo chagado, servo sofredor, “roubou o céu de Jesus” por seu olhar de fé, reconhecendo naquele “Homem das dores” o Rei de Israel, cujo Reino não é deste mundo, pois os dois estavam prestes a morrer.


Tomé viu as chagas gloriosas do Ressuscitado que passou pela Cruz e tornou-se o apóstolo das Índias.


Foi olhando a glória de Deus no céu que Estêvão pôde ser fiel no martírio. Foi pelo estrondoso olhar de misericórdia sobre Saulo, quando ia prender os cristãos em Damasco, que ele ficou realmente cego e, após ser iluminado por essa nova luz, tornou-se o “apóstolo dos gentios.”


A Santa Teresa de Ávila foi dada a graça de olhar para o lugar que o demônio lhe havia preparado no inferno e o que lhe era reservado no céu, por Deus. Com essa visão, escolheu, é claro, o lugar celeste e empenhou-se para “conquistá-lo” para si e para a humanidade.


Nesta sociedade incrédula, consumista, materialista, secularizada, que perdeu o sentido do sagrado, somente a experiência do olhar misericordioso de Jesus atingindo o olhar pobre e sedento de cada homem pode mudar o mundo.

O mundo que erra muito acerca do conhecimento de Deus, que tem seu olhar voltado para a grandeza e a beleza da criação – em lugar da grandeza e beleza do Criador – só poderá redirecionar seu olhar através do profundo poder transformador da misericórdia. A recente canonização de Irmã Faustina, apóstola da misericórdia neste nosso século, é uma indicação segura de que a Igreja entra num novo kairós em que o novo pentecostes nos leva ao coração misericordioso de Jesus e à adoração. É um tempo de graça em que se proclama Teresinha de Jesus Doutora da Igreja e, trilhando sua pequena via de abandono, conheceremos mais rapidamente a misericórdia e depressa aprenderemos a adorar.


É importante nos alegrar pelas sementes que morreram e já começam a florescer nesta nova primavera da Igreja, e mais ainda pelo que virá... Pois quanto mais maldade, injustiça e dureza de coração se vê, maiores provisões de graça e misericórdia caem do coração de Cristo para renovar a humanidade. Assim, rezamos para que não tarde o dia em que todos proclamaremos, em uníssono: “Agora, viram-te meus olhos”!